terça-feira, 9 de abril de 2013

Olhos vermelhos


Depois de rolar várias vezes na cama tentando inutilmente dormir, Lúcia se levantou e foi à cozinha vasculhar o armário procurando encontrar biscoitos doces. 

Sem sucesso em sua busca e sentindo seus olhos pesados, dirigiu-se ao banheiro e mirou-se no espelho na intenção de verificar como os mesmos estavam. 

Assim que a iluminação tomou conta do pequeno cômodo da casa que era composto por um vaso sanitário, um chuveiro exposto sem a proteção de um box e um pequeno jogo de pia e espelho, ela olhou para fora da janelinha que se abria deste banheiro para o telhado da casa vizinha. 

Lá estava ele: branco, raquítico, alerta, olhos vermelhos — um gato albino. 

O primeiro sentimento que a acometeu foi o de a mais profunda repulsa. 

A imagem daquele ser lhe era miserável, o resumo da inadaptação, do erro genético, do caminho oposto ao do comovente movimento harmonioso da Natureza

Lúcia se esforçou para conseguir continuar a encará-lo e ambos permaneceram imobilizados por algum tempo. 

Depois desse momento de paralisia, o passo, enfim, foi dado pelo mais forte daquele encontro: saltando para o outro lado do telhado, o gato desapareceu. 

Diante disso, ainda inebriada pela mescla da imagem bizarra do gato ao estado de insônia que sempre a deixava confusa, Lúcia voltou para seu quarto. 

Sentou-se na cama e passou supor, então: o gato albino deveria se esconder o dia todo para não ser agredido pela luminosidade do sol. 

Sairia somente à noite para se alimentar. Caminharia pela madrugada fuçando restos, sempre sozinho para que não tivesse que disputar o lixo com os outros animais fuçadores de lixo. 

Devido a sua compleição física, teria dificuldades em arranjar comida. Em uma disputa pelo alimento, a desvantagem sempre seria sua, já que não tinha forças para lutar. 

Difícil era receber a empatia de algum insone ou de um notívago disposto a lhe oferecer comida. Sempre expulso, carregaria pelas ruas escuras da cidade a sua imagem repugnante. 

Com sorte, após a batalha para adquirir pelo menos o mínimo que o permitiria estabelecer-se em pé, o herói da sobrevivência, voltaria para seu bueiro, com seu pequeno quinhão no estômago, sempre com suas costelas a se destacar, onde permaneceria até que a luz do dia não ferisse mais seus olhos. 

Depois de se deixar envolver por essas breves, porém, intensas conjecturas, Lúcia sentiu-se impregnada de algo que lentamente se aproximava de uma manifestação emocional, cuja palavra mais próxima no sentido de descrevê-la seria “empatia”. 

Esfregou seus olhos agressivamente, pois a falta de sono fazia com que os mesmos ficassem irritados. Sentiu-os como se os mesmos estivessem vermelhos e, com isso, uma comparação entre ela e o gato albino passou a configurar-se: também ela se considerava inapta diante da vida, também ela era a esquálida diante das pessoas que lhe cercavam. 

O cotidiano lhe era uma agressão: durante seu trabalho, concentrava-se apenas em realizar o que lhe era solicitado, buscando não se embrenhar em conversas que considerava tolas ou fazer parte da estrutura que exigia a competição selvagemente felina entre os seus. 

Acostumara-se a essa sua condição e convivia com uma enorme comiseração por si mesma, todos os dias. 

Com a sensação de ser um grande blefe da vida, voltava para casa (bueiro?) com o alívio de mais um dia ter chegado ao fim. 

Lúcia percebeu, porém, nesse momento que algo fundamental lhe diferenciava do gato albino. 

Este, em meio a sua luta para manter-se vivo, demonstrou uma solidez em seu ser não físico que pôde transmitir no olhar enviado a ela antes de saltar e ir embora. 

Olhar contrastante de um ser de pulsão forte em corpo frágil. Lúcia não tinha as estratégias de sobrevivência que pudessem torná-la também uma heroína em seu mundo, transformando sua inconsistência e seu desencanto em algo que a pudesse fortalecer diante da vida. 

Ainda hoje, Lúcia busca todas as noites encontrar o gato albino no telhado ao lado de seu banheiro, com a expectativa de quem aguarda uma aparição divina. 

Pensa que se isso acontecer, ela poderá levá-lo para sua cama e oferecer-lhe leite morno. Poderá abraçá-lo, acariciá-lo, encará-lo em seus olhos vermelhos e aprender com ele. 

Ela deseja intensamente que o gato albino volte, mas ele ainda não mais a visitou. Resta a Lúcia a fantasia de que, naquela noite em que se viram pela primeira e única vez, ela o acolheu para sempre como seu.



Ana Célia Ellero




E-MAIL: anaceliae@yahoo.com.br

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