quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

As aposentadas

Almocei com oito senhoras, tias e amigas da mãe de minha esposa, em Belo Horizonte (MG).
A anfitriã Zelinha preparou uma galinhada no pátio, com mesas de madeira à sombra de jabuticabeiras. A horta simbolizava o nosso ventilador de temperos. Vinha o cheiro de hortelã e de alecrim com a brisa, coisa gostosa. Puxava o ar com força como se estivesse no meio de um bosque.
Eu era o único homem naquele clube de mulheres mais velhas, na faixa dos 75 anos. 
O que notei, a princípio, foi a raça superior feminina. A maioria, com duas exceções, experimentava a viuvez há um bom tempo.
Os homens morrem mais cedo, apesar de fazerem muito menos dentro e fora de casa do que as mulheres. Pelo histórico das famílias, já imaginei a minha Beatriz depois de minha morte, velhinha, linda de preto, magra e elegante e não sentindo em nada a minha falta. Doeu, mas não há como conter a vida.
As viúvas não mencionavam os seus falecidos. Parecia que estavam mais felizes agora do que quando casadas. Isso doeu também, porém logo entendi que não se pode ficar preso à memória.
Fui descontar os meus medos do futuro tentando puxar conversa. Afinal, precisava me sobressair naquele grupo, mostrar minha trajetória gloriosa e excitante.
Desfrutava da vantagem de uma carreira no auge. Quebrei as pernas e os braços lentamente. Não conseguia me encaixar em nenhum tema, elas falavam rápido demais. Trocavam de assunto com altivez, e não permitiam repescagem. Quando raciocinava algo inteligente, o papo já havia migrado para uma nova reflexão e perdia a deixa. Política, economia, roupas, dietas, eu sempre sobrava. E elas não apresentavam nenhuma compaixão comigo. Iam passando de mão em mão as panelas e as palavras.
Daí decidi me vingar e trazer à tona as minhas recentes leituras e os filmes vistos no cinema. Sou um cinéfilo e um rato de sebo. Para ver, por exemplo, faltavam apenas uns três títulos dos concorrentes das principais categorias do Oscar. Tampouco obtive silêncio e empatia. Elas tinham assistido a mais filmes do que eu e lido mais no último mês. As velhinhas foram se transformando em comentaristas e resenhistas velozes e furiosas. Calei a boca e entrei em depressão durante o restante das horas.
É impossível concorrer com a programação cultural das aposentadas. Aprenda isso!
Aprendi da mais constrangedora forma. Elas ainda me jogaram na cara visitas a exposições, vernissages, peças de teatro e concertos da Filarmônica. Quando comentaram as encenações no Royal Opera House em Londres e os musicais da Broadway em Nova York, o terror exagerou e passou do ponto. Arcava com a maior humilhação intelectual da minha bagagem. Suei frio e me escondi debaixo das jabuticabeiras. Por pouco, Beatriz não ficou viúva ali mesmo.

Por: Fabrício Carpinejar

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Higiene Moral

"A gente cuida do cabelo, da pele, das unhas, do corpo, da casa, do carro, dos filhos. Arruma, ajeita, organiza, guarda. E o que tem acontecido com nossos guardados da alma? O que estamos reciclando, desperdiçando, acumulando, estragando? Somos caixa de guardados, amontoado de coisas, escolhas, sentimentos, lembranças. Pedaços de nós virando caminho, misturando pés e estrada. Quebra cabeças, colcha de retalhos. Alguns guardados tem cheiro de cuidado e encontra fácil nosso sorriso. Outros, apertam nosso peito e aborrecem nossos olhos. E quando aprendemos a identificar o que se guarda e o que se joga fora? Quando não doer mais, quando o mal cheiro incomodar, quando precisamos de espaço. E esse dia sempre chega. Embora vez ou outra adiemos a faxina, chega o tempo em que sentimos necessidade do cheiro de casa limpa, de espaço nas gavetas, de novas cores nas prateleiras. O importante é analisar cada peça, reler cada pedacinho de papel, tocar cada sentimento e separar o que soma, o que alegra, o que ensina, o que nos torna melhores, mais amplos, mais fortes, mais leves. O resto? O resto a gente joga na lixeira do esquecimento. É preciso enxergar além do que se vê para saber identificar o que se descarta e o que vira relíquia..." 

__Renata Fagundes

domingo, 22 de janeiro de 2017

Viver ou acumular

Um jovem advogado foi indicado para inventariar os pertences de um senhor recém falecido. Segundo o relatório do seguro social, o idoso não tinha herdeiros ou parentes vivos. Suas posses eram simples. O apartamento alugado, um carro velho, móveis baratos e roupas puidas. "Como alguém passa toda a vida e termina só com isso?", pensou o advogado. Anotou todos os dados e ia deixando a residência quando notou um porta-retratos sobre um criado mudo.

Na foto, estava aquele mesmo senhor, quando mais novo. Ao fundo havia um mar muito verde e uma praia repleta de coqueiros. À caneta escrito bem de leve no canto superior da imagem lia-se "Sul da Tailândia". Surpreso, o advogado abriu a gaveta do criado e encontrou um álbum repleto de fotografias. Lá estava o senhor, em diversos momentos da vida, em fotos em todos os cantos do mundo.

Em um tango na Argentina, na frente do muro de Berlim, em um tuk tuk no Vietnã, sobre um camelo com as pirâmides ao fundo, tomando vinho em frente ao Coliseu, entre muitas outras. Na última página do álbum, um mapa, quase todos os países do planeta marcados com um asterisco em vermelho, indicando por onde havia passado. Escrito a mão, no meio do oceano Pacífico, uma pequena poesia:

"Não construí nada que me possam roubar.
Não há nada que eu possa perder. 
Nada que eu possa trocar, 
Nada que se possa vender.

Eu que decidi viajar,
Eu que escolhi conhecer,
Nada tenho a deixar
Porque aprendi a viver..."

(Autor desconhecido)