segunda-feira, 15 de abril de 2013

Ondas de solidão


Se possuísse uma canoa e um papagaio, podia considerar-me realmente como um Robinson Crusoé, desamparado na sua ilha. 

Há, é verdade, em roda de mim uns quatro ou cinco milhões de seres humanos. Mas, que é isso? 

As pessoas que nos não interessam e que se não interessam por nós, são apenas uma outra forma da paisagem, um mero arvoredo um pouco mais agitado. 

São, verdadeiramente como as ondas do mar, que crescem e morrem, sem que se tornem diferenciáveis uma das outras, sem que nenhuma atraia mais particularmente a nossa simpatia enquanto rola, sem que nenhuma, ao desaparecer, nos deixe uma mais especial recordação. 

Ora estas ondas, com o seu tumulto, não faltavam decerto em torno do rochedo de Robinson - e ele continua a ser, nos colégios e conventos, o modelo lamentável e clássico da solidão. 

Eça de Queirós- Portugal, 1845 - 1900 

A ira nunca é súbita


A ira nunca é súbita. Nasce de um longo roer precedente, que ulcerou o espírito e nele acumulou a força reactiva necessária para a explosão. 

Daqui resulta que um belo acesso de cólera não é, de forma alguma, sinal de uma índole franca e directa. 

É, pelo contrário, revelação involuntária de uma tendência para nutrir dentro de si o rancor - isto é, de um temperamento fechado, invejoso, e de um complexo de inferioridade. 

O conselho de «estar em guarda contra quem nunca se irrita», significa, portanto, que - todos os homens, acumulando inevitavelmente ódio - convém ter especial cuidado com os que nunca se traem por acessos de ira. 

Quanto a ti, não fazes mal em ser insicero no teu remoer interior, mas em te traíres na explosão. 

Cesare Pavese- Itália, 1908 -1950 Escritor

A hipocrisia do ser


Para que servem esses píncaros elevados da filosofia, em cima dos quais nenhum ser humano se pode colocar, e essas regras que excedem a nossa prática e as nossas forças? 

Vejo frequentes vezes proporem-nos modelos de vida que nem quem os propõe nem os seus auditores têm alguma esperança de seguir ou, o que é pior, desejo de o fazer.

Da mesma folha de papel onde acabou de escrever uma sentença de condenação de um adultério, o juiz rasga um pedaço para enviar um bilhetinho amoroso à mulher de um colega. 

Aquela com quem acabais de ilicitamente dar uma cambalhota, pouco depois e na vossa própria presença, bradará contra uma similar transgressão de uma sua amiga com mais severidade que o faria Pórcia.

E há quem condene homens à morte por crimes que nem sequer considera transgressões. 

Quando jovem, vi um gentil-homem apresentar ao povo, com uma mão, versos de notável beleza e licenciosidade, e com outra, a mais belicosa reforma teológica de que o mundo, de há muito àquela parte, teve notícia.

Assim vão os homens. Deixa-se que as leis e os preceitos sigam o seu caminho: nós tomamos outro, não só por desregramento de costumes, mas também frequentemente por termos opiniões e juízos que lhes são contrários. 

Michel Eyquem de Montaigne -França 1533,1592