segunda-feira, 15 de abril de 2013

A ira nunca é súbita


A ira nunca é súbita. Nasce de um longo roer precedente, que ulcerou o espírito e nele acumulou a força reactiva necessária para a explosão. 

Daqui resulta que um belo acesso de cólera não é, de forma alguma, sinal de uma índole franca e directa. 

É, pelo contrário, revelação involuntária de uma tendência para nutrir dentro de si o rancor - isto é, de um temperamento fechado, invejoso, e de um complexo de inferioridade. 

O conselho de «estar em guarda contra quem nunca se irrita», significa, portanto, que - todos os homens, acumulando inevitavelmente ódio - convém ter especial cuidado com os que nunca se traem por acessos de ira. 

Quanto a ti, não fazes mal em ser insicero no teu remoer interior, mas em te traíres na explosão. 

Cesare Pavese- Itália, 1908 -1950 Escritor

A hipocrisia do ser


Para que servem esses píncaros elevados da filosofia, em cima dos quais nenhum ser humano se pode colocar, e essas regras que excedem a nossa prática e as nossas forças? 

Vejo frequentes vezes proporem-nos modelos de vida que nem quem os propõe nem os seus auditores têm alguma esperança de seguir ou, o que é pior, desejo de o fazer.

Da mesma folha de papel onde acabou de escrever uma sentença de condenação de um adultério, o juiz rasga um pedaço para enviar um bilhetinho amoroso à mulher de um colega. 

Aquela com quem acabais de ilicitamente dar uma cambalhota, pouco depois e na vossa própria presença, bradará contra uma similar transgressão de uma sua amiga com mais severidade que o faria Pórcia.

E há quem condene homens à morte por crimes que nem sequer considera transgressões. 

Quando jovem, vi um gentil-homem apresentar ao povo, com uma mão, versos de notável beleza e licenciosidade, e com outra, a mais belicosa reforma teológica de que o mundo, de há muito àquela parte, teve notícia.

Assim vão os homens. Deixa-se que as leis e os preceitos sigam o seu caminho: nós tomamos outro, não só por desregramento de costumes, mas também frequentemente por termos opiniões e juízos que lhes são contrários. 

Michel Eyquem de Montaigne -França 1533,1592 

A roda da fortuna


Não se move a roda, sem que a parte que virou para o céu seja maior repuxo para tocar na terra, e a parte que se viu no ar erguida se veja logo da mesma terra pisada, sem outro impulso para descer, mais que com o mesmo movimento com que subiu; por isso a fortuna fez trono da sua mesma roda, porque, como na figura esférica se não conhece nela primeiro nem último lugar, nas felicidades andam sempre em confusão as venturas. 

Na dita com que se sobe, vai sempre entalhado o risco com que se desce. Não há estrela no céu que mais prognostique a ruína de um grande, que o levantar de sua estrela. Mais depressa se move aos afagos da grandeza que nos lisonjeia, do que aos desfavores com que a fortuna nos abate.

Quanto trabalharam os homens para subir, tantas foram as diligências que fizeram para se arruinarem; porque, como a fortuna (falo com os que não são beneméritos) não costuma subir a ninguém por seus degraus, em faltando degraus para a descida, tudo hão-de ser precipícios; e diferem muito entre si o descer e o cair. 

Se perguntarmos o por que caiu Roma, o maior império do Mundo, dir-nos-á seu historiador que foi porque cresceu muito; e com efeito acabou de grande, e as mesmas mãos que a edificaram, essas mesmas a desfizeram. 

Sem mãos se arruinou aquela estátua de Nabuco, porque a mesma grandeza não necessita de mãos, mas só de si para se arruinar. 

Em um monte de glória onde assistiu Cristo, se formaram estas glórias dos raios do Sol e da brancura da neve, para que, desfazendo-se a neve com o sol, se desfizessem umas glórias com outras; porque não depende a grandeza, para a ruína, mais que de si mesma, e quando falte quem as acabe, elas mesmas se consomem. 

Padre António Vieira