segunda-feira, 15 de abril de 2013

A roda da fortuna


Não se move a roda, sem que a parte que virou para o céu seja maior repuxo para tocar na terra, e a parte que se viu no ar erguida se veja logo da mesma terra pisada, sem outro impulso para descer, mais que com o mesmo movimento com que subiu; por isso a fortuna fez trono da sua mesma roda, porque, como na figura esférica se não conhece nela primeiro nem último lugar, nas felicidades andam sempre em confusão as venturas. 

Na dita com que se sobe, vai sempre entalhado o risco com que se desce. Não há estrela no céu que mais prognostique a ruína de um grande, que o levantar de sua estrela. Mais depressa se move aos afagos da grandeza que nos lisonjeia, do que aos desfavores com que a fortuna nos abate.

Quanto trabalharam os homens para subir, tantas foram as diligências que fizeram para se arruinarem; porque, como a fortuna (falo com os que não são beneméritos) não costuma subir a ninguém por seus degraus, em faltando degraus para a descida, tudo hão-de ser precipícios; e diferem muito entre si o descer e o cair. 

Se perguntarmos o por que caiu Roma, o maior império do Mundo, dir-nos-á seu historiador que foi porque cresceu muito; e com efeito acabou de grande, e as mesmas mãos que a edificaram, essas mesmas a desfizeram. 

Sem mãos se arruinou aquela estátua de Nabuco, porque a mesma grandeza não necessita de mãos, mas só de si para se arruinar. 

Em um monte de glória onde assistiu Cristo, se formaram estas glórias dos raios do Sol e da brancura da neve, para que, desfazendo-se a neve com o sol, se desfizessem umas glórias com outras; porque não depende a grandeza, para a ruína, mais que de si mesma, e quando falte quem as acabe, elas mesmas se consomem. 

Padre António Vieira

domingo, 14 de abril de 2013

O Cinismo dos valores


Cada vez mais desesperado. Olho, olho, e só vejo negrura à minha volta. Fé? 

Evidentemente... Enquanto há vida, há esperança — lá diz o outro. Mas, francamente: fé em quê? 

Num mundo que almoça valores, janta valores, ceia valores, e os degrada cinicamente, sem qualquer estremecimento da consciência? 

Peçam-me tudo, menos que tape os olhos. Bem basta quando a terra nos cobrir! 

Ah! mas a humanidade acaba por encontrar o seu verdadeiro caminho — dizem-me duas células ingênuas do entendimento. 

E eu respondo-lhes assim : Não, o homem não tem caminhos ideais e caminhos de ocasião. O homem tem os caminhos que anda. 

Ora este senhor, aqui há tempos, passou três séculos a correr atrás dum mito que se resumia em queimar, expulsar e perseguir uns outros homens, cujo pecado era este:

saber filosofia, medicina, física, astronomia, religião, comércio — coisas que já nessa época eram dignas e respeitáveis. 

Miguel Torga

Ninguém me ama a ponto de ser eu


Fiz o que era mais urgente: uma prece. Rezo para achar o meu verdadeiro caminho. 

Mas descobri que não me entrego totalmente à prece, parece-me que sei que o verdadeiro caminho é com dor. 

Há uma lei secreta e para mim incompreensível: só através do sofrimento se encontra a felicidade. 

Tenho medo de mim pois sou sempre apta a poder sofrer. Se eu não me amar estarei perdida — porque ninguém me ama a ponto de ser eu, de me ser. 

Tenho que me querer para dar alguma coisa a mim. Tenho que valer alguma coisa?

Oh protegei-me de mim mesma, que me persigo. Valho qualquer coisa em relação aos outros — mas em relação a mim, sou nada. 

É tão bom ter a quem pedir. Nem me incomodo muito se eu não for totalmente atendida. 

Eu peço a Deus para eu ser mais bonita — e não é que meu olho faísca ao mesmo tempo que meus lábios parecem mais doces e cheios? 

Eu peço a Deus tudo o que eu quero e preciso. É o que me cabe. 

Ser ou não ser atendida — isso não me cabe a mim, isto já é matéria-mágica que se me dá ou se retrai. Obstinada, eu rezo. 

Eu não tenho o poder. Tenho a prece. 

Clarice Lispector